domingo, 15 de setembro de 2013

Registro de Ocorrência e Colóquios

O choque daquele momento não me tocou. Eu parecia tão indiferente àquela explosão de sentimentos que qualquer um duvidaria do meu papel naquele triângulo de pessoas. Ser homem nos exige certo nível de insensibilidade. Aliás, creio que tal condição devia ser exigida a qualquer criatura. Imagine se um leão teria dó de comer qualquer filhote de zebra depois de ter passado o dia inteiro copulando e sequer ter saído do lugar para ter a janta. Dó ou compaixão não devia fazer parte do vocabulário humano. Se pecamos, certamente pecamos pelo exagero com que denotamos o sentimento alheio. As pessoas sofrem porque escolhem sofrer. Eu mesmo não me lembro de ter sofrido alguma coisa.
Mas uma nota de irritação me tirou da inércia. Aquela moça gritando e chorando alto incomodou meus tímpanos. Suspirei e perguntei até com um pouco de preocupação sobre seu estado de saúde, física e mental, "você está bem?". Se eu já tivesse adiantado a você a razão dos gritos você não me daria razão, por isso quero te convencer antes dos teus preconceitos sobre minha inocência. Eu não a traí. A cama, a garota e a nossa nudez eram ferramentas do delírio dela. Eu mesmo quis fazê-la olhar melhor para o que havia por trás do que se vê. Ver é irreversível, eu sei, mas o homem que crê deve ir além do visível, não é mesmo? E ela era, aparentemente, uma mulher de fé. Talvez da fé que mais falta aos homens: a fé em si mesmo! Não vale à pena se desesperar, mesmo em ventos contrários. E, naquela ocasião, embora eu estivesse com outra, eu pensava nela. Juro.
Sei que em ocasiões de flagrante o melhor é não criar provas contra si mesmo. Por isso o silêncio sobre o ocorrido é fundamental. Eu lhe disse que falaríamos mais tarde e que o mais importante naquele momento era se acalmar. Ela, não eu, é claro. Aliás, me ocorreu acusá-la de invasão de privacidade, ou mesmo de invasão de domicílio. Mas precisava recorrer ao advogado antes. Então, pedi à Mila - ou era Melissa? - que pusesse a roupa. Não argumentei sobre nada, apenas me dispus a mediar conflito que é, isso sim, um ato muito nobre. Ela me olhou fixamente, não sei se naqueles olhos vermelhos havia algum tom de raiva ou rancor - há diferença? - e não me dirigiu mais a palavra - ou seria "à palavra"? De qualquer modo, ela saiu. Me voltei à M... enfim à garota que estava comigo e ela me deu um tapa. Acredita nisso? Por que fui agredido? Que hábito grosseiro das mulheres pensarem apenas em si mesmas. Ela não imaginou que eu pudesse estar consternado por ver sair a mulher que eu amava?!
Está aí uma ocasião de colóquio. O amor é algo ainda difícil de se definir. Não faz muito tempo que li a respeito e dizia que, biologicamente, é o mesmo que comer chocolate. Desde Camões, ou melhor, desde o Apóstolo Paulo, chegando a... Sei lá quem. Todos eles definiram o amor como algo sem definição. Se não há definição protocolar, o termo pode ser usado de acordo com o juízo pessoal de cada um. De tal modo, se você não sabe o que é amor, não pode me julgar por usar o termo. A meritíssima bate o martelo e fim de assunto. Causa ganha.
No dia seguinte, eu me encontrava com alguns amigos ali mesmo no Lago dos Patos, cada vez mais tomado de gentes estranhas, e recebi a ligação dela. Ligação estranha. Se você não quer criar um acordo com o seu acusado, não ligue para ele. Ela chegou a dizer algo como perdão, mas não queria voltar. Não entendi. A princípio nós não tínhamos terminado, então, erro de princípio. Em segundo momento, o perdão infere absolvição, então, como manter a pena? Enfim... A vida parece muito complicado na cabeça dela. Ela chegou a me ligar três outras vezes e em uma me perguntou se eu não pediria desculpas. Não me lembro o que eu disse. Ah, sim. Gravei por cautela, disse que eu precisava de tempo para pensar. Acho que agi bem em evitar o conflito.
Bom, que me importa que cantem as gralhas. Quero eu cantar o que me faz bem. Há mil mulheres no mundo e nenhuma verdade nele.